segunda-feira, 22 de março de 2010

A MÚSICA E O CÉREBRO


Oliver Sacks

De todos os animais, o homem é o único dotado de ritmo, capaz de responder à música com movimentos. É também o único a apresentar um cérebro adaptado para compreender complexas estruturas musicais e ainda se emocionar com elas. Músicos apresentam alterações em regiões cerebrais jamais vistas em outros profissionais. Para o neurologista britânico Oliver Sacks, a musicalidade é tão primordial à espécie quanto a linguagem e entender a relação entre música e cérebro é crucial para a compreensão do homem.
Em seu mais novo livro, “Alucinações musicais” (Editora Companhia das Letras), o especialista relata casos de pessoas que reagem à música de formas incomuns. Há os que simplesmente não conseguem ouvi-la. E há os que a ouvem o tempo todo, mesmo quando nenhuma melodia está tocando.
Há gente que passou a ouvir os sons de forma diferente após ser submetido a uma cirurgia cerebral. E mesmo os que desenvolveram um incomum talento musical. Nesta entrevista, Sacks conta que há um vasto caminho ainda a percorrer para que se possa entender completamente esses fenômenos. Mas uma coisa, diz, é fato: “A música se apossou de muitas partes do cérebro humano.”
O GLOBO (Roberta Jansen): O senhor concorda com Charles Darwin quando ele diz que a música teve um papel importante na evolução? Especificamente na seleção sexual, como um atrativo a mais para o sexo oposto?
OLIVER SACKS: Como o comportamento e as suscetibilidades não deixam registros fósseis, é difícil saber como nossos ancestrais se comportavam. Mas estou inclinado a pensar que a música surgiu muito cedo na espécie humana, tão cedo quanto a linguagem. Linguagem e música são fontes de comunicação primordiais.
GLOBO: O senhor discorda, portanto, de Steven Pinker e de outros especialistas que sustentam que a música é um subproduto do aparato sensorial, prazerosa mas dispensável?
SACKS: Sim, discordo de Pinker. Não vejo a música como algo acidental e trivial, como um subproduto da linguagem.A música está presente em todas as culturas e apresenta, nos seres humanos, aspectos únicos que não têm paralelo na linguagem. Falo do ritmo, do fato de respondermos à música com movimentos. Nenhum outro animal faz isso. É preciso ver o ritmo como algo primordial na evolução humana.Porque todos os seres humanos respondem a ele. A música une as pessoas. E há conexões específicas no cérebro para isso.
GLOBO: Unir as pessoas poderia ser uma vantagem evolutiva?
SACKS: Não posso dizer que a musicalidade humana se desenvolveu para unir as pessoas.Mas algo surgiu, se mostrou vantajoso e houve a seleção dessa característica. É claro que a musicalidade é uma vantagem evolutiva. Nenhum outro animal dança com ritmo, mas qualquer criança o faz. Isso pode ter sido um fenômeno quando surgiu, todos esses pequenos seres dançando.
GLOBO: De que forma isso é marcado no cérebro humano?
SACKS: Muitas partes do cérebro se desenvolvem com a percepção, o aprendizado e a imaginação do ritmo. De novo, nenhum outro animal tem a capacidade de ouvir e analisar sons complexos, com tons, semitons, ritmos, palavras.Essa habilidade é especificamente humana. Mesmo pessoas que sofrem de mal de Alzheimer ou tiveram um derrame respondem à música.Várias estruturas do cérebro se relacionam a isso.
GLOBO: De que forma?
SACKS: A música se apossou de muitas partes do cérebro humano. É possível ver como o cérebro se modifica em resposta à música. Estudos com imagens do cérebro já comprovaram a ampliação de determinadas regiões no cérebro de músicos. Vendo imagens de cérebros, não dá para dizer quem é matemático ou escritor. Mas dá para dizer facilmente quem é músico quando essas estruturas ampliadas aparecem.
GLOBO: Há alguma parte do cérebro especialmente voltada para música?
SACKS: Não há uma só parte do cérebro. A música está em todo mundo, por todo o cérebro, envolve várias partes desse órgão e não necessariamente as mesmas. Isso é que é o mais incrível.
GLOBO: Mas há também os que não respondem de forma alguma à música, não é?
SACKS: Sim, há algumas pessoas que não percebem musica e ficam muito impressionados com os relatos. Há outros que não ouvem determinados tons ou semitons. Essas amusias ocorrem em razão de danos no cérebro. Parte da rede que está faltando.
GLOBO: E as alucinações musicais? Até que ponto elas poderiam ser interpretadas como um problema psicológico?
SACKS: Quando uma pessoa tem alucinação musical (ouve música que ninguém mais está ouvindo), a primeira coisa que pensa é que ficou louco, que está ouvindo coisas. Mas é um processo completamente diferente de ouvir vozes como os esquizofrênicos. Eles recebem ordens, é bem diferente e as pessoas enfatizam isso. Alucinações musicais são bem comuns, são como velhas memórias que tocam na mente. Não é uma doença mental.
GLOBO: Por que a música muitas vezes provoca uma reação emocional? Como o cérebro é capaz de diferenciar uma melodia triste de uma alegre?
SACKS: Um dos maiores poderes da música é controlar emoção, desenvolver, provocar respostas emocionais. Anatomicamente, podemos dizer que algumas regiões do cérebro afetadas pela música estão perto daquelas ligadas às emoções, envolvidas nas percepções dos cheiros que despertam memórias. Mas ainda não está claro como essas respostas emocionais ocorrem. Não se sabe ainda o quanto depende da cultura.

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Fonte: http://oglobo.globo.com/ciencia/mat/2007/09/29/297941924.asp

CINEMA - AVATAR


De tempos em tempos uma tribo alienígena desce de uma nave espacial e balança a história do cinema. Isso aconteceu, por exemplo, em 1977 - a nave se chamava Millennium Falcon e um de seus ocupantes era o peludo Chewbacca, espécie de elo perdido entre o homem e o macaco. Na ocasião, Guerra nas Estrelas propôs uma nova maneira de fazer e comercializar filmes. Agora, os ocupantes da nave são índios azuis vindos diretamente do planeta Pandora. Avatar, maior sucesso de bilheteria da história, vencedor do Globo de Ouro de melhor filme na categoria Drama e candidato a bicho-papão do Oscar, é a maior revolução do cinema desde Guerra nas Estrelas. Quando a saga que opunha Luke Skywalker a Darth Vader foi lançada, a maior crítica de filmes da história da imprensa americana - Pauline Kael, da revista The New Yorker - escreveu que o cinema, para o bem e para o mal, nunca mais seria o mesmo. Do mesmo modo, Avatar parece destinado a dividir o invento dos irmãos Lumière em antes e depois. Há mais semelhanças entre os dois filmes do que pode supor a impenetrável filosofia Jedi - ou vá lá, a peculiar compreensão do mundo dos azulados índios Na'vi.
Quando se fala em revolução, não se trata apenas de uma questão estética. Ela existe, mas é secundária. Guerra nas Estrelas e Avatar se parecem, antes de qualquer outra coisa, por propor soluções originais para dilemas da indústria cinematográfica em suas respectivas épocas. Quando Guerra nas Estrelas foi lançado, o cinema americano vivia uma fase de excelentes diretores - Martin Scorsese, Francis Ford Coppola, Michael Cimino, Steven Spielberg - mas, exceto por algumas produções deste último, havia perdido a conexão com o mundo da cultura pop. Era um tempo em que o Oscar era dominado por filmes "adultos", muitos deles meditações sobre a Guerra do Vietnã, o atoleiro em que os Estados Unidos haviam se metido na época. George Lucas, diretor de Guerra nas Estrelas, queria voltar a fazer cinema para o público jovem. Sobretudo, queria fazer filmes que fossem mais do que filmes. Produções que - como ocorria em outras áreas da cultura pop, como o desenho animado ou os quadrinhos - fossem o ponto de partida para a venda de produtos: brinquedos, roupas, máscaras e os recém-inventados videogames.
Guerra nas Estrelas foi pensado com essa finalidade. E o resultado não poderia ser melhor. Foi o primeiro filme da história a faturar mais com merchandising do que com bilheteria - na época do lançamento, os três primeiros longas da série geraram 1,3 bilhão de dólares, enquanto os badulaques criados a partir da história, como a máscara de Darth Vader, arrecadaram 4 bilhões. O sucesso foi tanto que, na década seguinte, o cinema se voltou para o público para o qual Lucas olhara de forma pioneira: o adolescente do sexo masculino, que pagava ingresso e ainda comprava as traquitanas.
Avatar, do mesmo modo, é uma resposta a um dilema do nosso tempo, este muito mais dramático: a própria existência do cinema. Refletindo sobre o assunto, o jornalista David Denby, que sucedeu Pauline Kael como crítico da mais influente publicação cultural americana, criou a expressão "agnóstico de plataforma". Ele se refere a toda uma geração que não vê diferença entre assistir a um filme no cinema ou na tela de um computador, ou mesmo no microvisor de um telefone celular. Se os agnósticos de plataforma se tornassem maioria, escreveu Denby, os cinemas estariam destinados a acabar, e com eles toda uma fantástica tradição de obras de arte pensadas para a tela grande - ou alguém imagina assistir a clássicos como A Doce Vida, de Federico Fellini, ou O Leopardo, de Luchino Visconti, na tela de um iPhone?


CERVEJA LIGHT E CALÇA JEANS

Avatar é uma das respostas possíveis a esta questão. O filme dá um xeque-mate nos agnósticos de plataforma ao oferecer ao espectador uma experiência estética que só é viável dentro de uma sala de projeção. Apenas em frente à tela grande é possível sentir maravilhamento e medo quando harpias coloridas dão vôo rasante sobre os espectadores - ou quando, assumindo o ponto de vista dos índios que pilotam as aves, nos vemos dando mergulhos acrobáticos em clareiras de uma selva exuberante. O filme ressuscita a técnica do filme em terceira dimensão, que agora finalmente funciona direito - nada parecido com os ineficazes óculos de duas cores usados na pré-história do gênero. Assim como Guerra nas Estrelas teve vários sucessores, já estão anunciados filmes infanto-juvenis feitos com a mesma técnica de Avatar - séries como Shrek e Toy Story ganharão suas versões em três dimensões. Até George Lucas planeja relançar sua saga em 3D.
Outra semelhança entre Avatar e Guerra nas Estrelas é que os dois filmes abraçam um ideário que vem resistindo ao tempo de forma surpreendente: o da contracultura dos anos 60. A saga de George Lucas opunha um Império militarizado, comandado por Darth Vader, a um bando de hippies que acreditavam em coisas como pensamento positivo e percepção extra-sensorial - a chamada "força". O Império era eficiente e planejado. Os hippies, liderados por um velho guru, Obi-Wan Kenobi, e seu epígono, Luke Skywalker, eram desorganizados e intuitivos. Avatar segue a mesma linha, acrescentando pitadas de discurso ecológico. No filme, uma grande corporação quer expropiar índios de suas terras para explorar economicamente um minério valiosíssimo - ao qual o diretor James Cameron deu o irônico nome de "unobtainium", algo que não se pode obter. Para conseguir o seu intento, ela contrata um exército de mercenários e cria uma fantástica tecnologia de espionagem, na qual os informantes podem assumir corpos de índios -são eles os chamados "avatares".
Estão dadas as condições para um desfile de clichês politicamente corretos. A vida comunitária é boa, mas as grandes corporações são más. A ciência - os pesquisadores que querem usar os avatares com fins pacíficos - é "do bem", enquanto a tecnologia é "do mal". Sobretudo, não há espaço para nuances. Quando fez Guerra nas Estrelas, George Lucas disparou uma pedrada no relativismo moral dos anos 70. Ele queria, segundo declarou em entrevistas, fazer um filme onde fosse fácil distinguir o bem do mal, como nos antigos faroestes. Avatar segue a mesma linha. A cada quadro (se é possível chamar de quadro uma imagem que se projeta sobre o espectador) o diretor James Cameron deixa bem claro para quem devemos torcer.
Os diálogos vão na mesma direção. Numa cena em que alguém fala em intercâmbio de cultura entre nós, terráqueos, e os índios puros e idealistas que habitam o planeta Pandora, o protagonista do filme, o ex-fuzileiro naval Jake (interpretado pelo ator Sam Worthington), diz: "O que teríamos para oferecer a eles? Cerveja light e calça jeans?". Claro que ele poderia falar também numa sociedade menos machista (os índios azuis tratam suas mulheres como fazíamos na época das cavernas), ou em realizações artísticas como a Capela Sistina de Michelangelo ou a Nona Sinfonia de Beethoven. Mas aí o filme teria espessura, complexidade, faria pensar - o que não se enquadra na regra do faroeste que baliza tanto Avatar quanto Guerra nas Estrelas.

ROBÔS DE "METRÓPOLIS"

Outra coisa que George Lucas elevou à máxima potência e James Cameron de certa forma segue são as referências à história do cinema. Em Guerra nas Estrelas, os robôs são idênticos aos de Metrópolis (1927), clássico do diretor alemão Fritz Lang, enquanto os figurinos do mestre Obi-Wan Kenobi e demais cavaleiros Jedis são claramente copiados do filme Lawrence da Arábia (1962), a obra-prima do britânico David Lean. Nos anos 70, isso se chamava citação e era considerado "pós-moderno". Avatar, por seu turno, faz um verdadeiro inventário do cinema americano politicamente correto, com referências que vão de Pocahontas (1995) a Dança com Lobos (1990). As referências, no entanto, estão mais no tema abordado - o homem ocidental que se encanta com uma cultura diferente - do que no visual e figurinos.
Além da sensível distância no capítulo efeitos especiais - usando o metro de Avatar, até agora o maior triunfo da era da computação gráfica, as naves espaciais de papelão de Guerra nas Estrelas parecem ainda mais toscas - a grande diferença entre os dois filmes é que, em tempos céticos como os atuais, não se acredita mais em produções que determinem um rumo único para o cinema. Nos anos 70, os intelectuais que na época eram chamados de "apocalípticos" previram que Guerra nas Estrelas e seus sucessores varreriam do mapa as produções calcadas na dramaturgia adulta - ela seria substituída por arrasa-quarteirões com cara de história em quadrinhos. Isso não aconteceu: diretores devotados ao diálogo, como o americano Woody Allen, ou cultores do chamado "filme de arte", como o espanhol Pedro Almodóvar, continuaram existindo e fazendo sucesso. Ao propor, pela via do visual, uma nova experiência estética ao espectador, Avatar é uma resposta poderosa aos dilemas do cinema atual. Na época incerta e fascinante que vivemos, no entanto, sabemos que não é nem será a única. Leia Também: